Por Ricardo Flaitt, com a colaboração do sociólogo Marco Antonio Mota.
“Queimada é uma das centenas de Ilhas das Antilhas. O nome Queimada deve-se ao fato dos portugueses terem de queimar a ilha para vencer a resistência dos índios. Quase todos os nativos foram mortos. Trouxeram então escravos da África para trabalhar nos canaviais”. A bordo de um navio, um tripulante explica ao diplomata inglês, Willian Walker (Marlon Brando) as características da ilha. Assim começa Queimada, filme de Gillo Pontecorvo.
Todos os movimentos do homem são muito bem pesados e medidos. Não existe nada aleatório no jogo político mundial. Willian Walker (Marlon Brando) chega à Queimada com a missão de mudar a ordem do poder local, quebrar o monopólio português sobre a cana-de-açúcar e para passar a atender aos interesses da Coroa Inglesa. Mas como promover a ordem estabelecida em Queimada? Para isso, Walker (Brando) tem de encontrar/forjar um líder entre a população para deflagrar a revolução.
Willian vê essa possibilidade no escravo José Dolores (Evaristo Marquez). Assim incita seus anseios de liberdade e levando-o à condição de revolucionário. Com o discurso de que sua intenção é acabar com a exploração dos negros, Walker manipula José Dolores e sua liderança para alcançar os interesses econômicos liberais da Inglaterra. Hábil, astuto, maquiavélico, Walker une dois interesses: o anseio dos negros para se libertarem e, ao mesmo tempo, a mudança do centro do poder da ilha.
Com José Dolores consolida a revolução. Os negros depõem o governo, mas o ex-escravo descobre que não seria ele o governante do país. Indignado, assume o poder à força.
Mas seu “mandato” não dura muito, pois governar não é tão simples como os sonhos dos românticos e dos idealistas. Willian Walker (Brando) questiona o então presidente de Queimada, José Dolores: “Quem serão seus ministros? Com quem você irá negociar?…”. Ou seja, como comandar o País e seus inúmeros interesses que permeiam? Com olhar perplexo, Dolores se vê perdido, sem a dimensão de que governar é preciso muito preparo. Em outro diálogo carregado de ironia, Walker fala a Dolores: “A civilização é muito complicada”. Diante desse impasse, Dolores resolve fazer um pacto. Concorda que o país seja governado por outro representante, desde que sejam feitas algumas mudanças, como a libertação dos escravos.
Após nove anos, Willian Walker (Brando) retorna à Queimada, que vive sob uma ditadura. Dolores já não estava no poder e voltara a ser um revolucionário. Mas agora Walker não está mais “precisando” de Dolores, uma vez que os que estão no poder obedecem à “Rainha”. A resistência de Dolores precisa ser eliminada. Dolores precisa ser morto e passa a ser caçado como inimigo do Estado.
Cabe aqui perfeitamente uma declaração de Maquiavel: “Os homens mudam de governantes com grande facilidade, esperando sempre uma melhoria. Essa esperança os leva a se levantar em armas contra os atuais. E isto é um engano, pois a experiência demonstra mais tarde que a mudança foi para pior”.
Os governantes fazem com que o povo acredite que eles ocuparão o poder e terão oportunidade de decidir seus destinos, mas, ao final, constata-se, no círculo vicioso da História, que o povo, ainda que sob uma nova roupagem, continua a ser “massa de manobra” daqueles que detém o capital e o conhecimento, já que saber também é uma forma de poder.
Queimada é uma aula de política, envolve temas sobre um determinado período da História (inclusive do Brasil) e a relação do homem e seus interesses. Essencial para se entender os mecanismos do mundo. Queimada não tem a pretensão enfadonha de narrar uma história romântica dos oprimidos. É um grande filme porque mostra como o funciona o mundo. Não defende opressores nem oprimidos, mas mostra com inteligência como as coisas operam na política, com todos os seus jogos e interesses.
Curiosidades – No filme, Queimada é uma ilha portuguesa, mas a verdade é foi rodado na Colômbia. Outro ponto é que Portugal não colonizou nada nas Antilhas e, num diálogo, Brando explicou erroneamente: “Você sabe que Portugal e Inglaterra são inimigos tradicionais” (isso acontecia com a Espanha, Portugal sempre foi aliado da Inglaterra).
Evaristo Marquez, que interpretou José Dolores nunca tinha sido ator e muito menos tinha visto um filme no cinema.
Queimada (Burn!, 1968), de Gillo Pontecorvo. Drama. Elenco: Marlon Brando, Renato Salvatori, Norman Hill, Evaristo Marquez, Tom Lyons. Música de Ennio Morricone.Colorido, 132 min.
Veja também outros filmes do diretor Gillo Pontecorvo: A Batalha de Argel (1966) e Kapò (1959).
Ricardo Flaitt é assessor de imprensa da Federação dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo e colunista do site www.tricolorpaulista.net. Dicas e sugestões para: ricardoflaitt@hotmail.com
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