Artigo de Marcio Pochmann
No Brasil contemporâneo, a base das mudanças sociais esteve, de maneira geral, demarcada profundamente pela heterogeneidade associada à intensa desigualdade na partilha dos frutos da expansão econômica, conforme muito bem destacou Sérgio Buarque de Holanda. Ademais, por não se ter dado de forma completa e desacompanhada das reformas civilizatórias, a trajetória do processo de transformação socioeconômica terminou por combinar insistentemente o moderno com o atraso.
Antes de ter completado mais de duas décadas de retrocesso econômico e social, observado a partir da crise da dívida externa (1981 – 83), o Brasil perseguiu, por quase cinco décadas, uma fase de intensa transformação econômica e social que o permitiu avançar da 56ª para 8ª economia mundial e reduzir tanto a pobreza – de mais de 4/5 para menos de 2/5 da população – como o analfabetismo – de 5/6 para 1/5 dos brasileiros. Apesar da velocidade das transformações, constata-se que tudo isso não resultou no mesmo patamar civilizatório verificado nos países desenvolvidos devido não apenas à tardia internalização do projeto de industrialização nacional (pós-1930), mas também à baixa cultura democrática. A incipiência do regime democrático, que não chega a 40% do século de industrialização nacional, impossibilitou a realização plena das reformas agrária, tributária e social. Nos dias de hoje, o país segue com estrutura fundiária pouco distinta da brutal concentração constatada no início dos anos 1950, assim como continuam os pobres a arcar com o maior peso da carga tributária e o estágio de bem-estar social muito distante do avanço econômico alcançado.
Apesar disso, a sociedade brasileira apresentou significativa mobilidade social, com rápido e volumoso fluxo migratório do campo para cidade. Em síntese, o Brasil fez, em três décadas praticamente, o que as nações desenvolvidas levaram mais de um século para transitar majoritariamente de população rural para urbana. Dada a inacreditável brutalidade da vida no campo, o ingresso nas cidades, por mais penoso que tenha sido, representou, muitas vezes, ascensão social. Para o grosso dos migrantes que não tiveram alternativa do que morar nas favelas das grandes cidades, as condições de vida conseguiam ser um pouco melhores do que as existentes no meio rural, o que garantiu distinção importante do processo de formação da classe trabalhadora nacional com o observado nas nações européias, por exemplo. Também a ascensão para a classe média assalariada motivada pelas oportunidades de emprego nas grandes empresas privadas nacionais e estrangeiras e no setor público ganhou destaque. A elevação de escolaridade se mostrou inegavelmente para a elite branca a melhor condição para subir mais rápido na vida. Enquanto os brancos subiam de elevador o edifício socioeconômico, os não-brancos tinham muitas vezes que se contentar com os degraus da escada ascensional.
Nas décadas de 1980 e 1990, contudo, as mudanças sociais sofreram uma dura obstrução. Para a classe média, certa crise de reprodução social adveio das políticas neoliberais de abertura comercial e produtiva que enxugaram os postos de trabalho intermediários nas grandes empresas e no setor público com a bárbara privatização e o definhamento do Estado. Engenheiros, professores, médicos e advogados, para citar algumas categorias profissionais que viveram as condições do desaburguesamento derivado do bloqueio ao acesso ocupacional e, por conseqüência, à reprodução do padrão de vida próprio da classe média. Da mesma forma, a classe trabalhadora teve que se contentar com até a desproletarização, com operários demitidos tendo de abrir pequenos negócios para sobrevivência frente ao enorme crescimento do desemprego. A juventude, em virtude disso, sofreu um dos mais agudos processos econômico e social regressivos, com prejuízos inimagináveis para mais de uma geração de brasileiros.
Felizmente, o Brasil de hoje começa a oferecer um cenário bem diferente. Com a expansão econômica acumulada em quase 24% entre 2001 e 2007 (2/3 maior do verificado na década de 1990), o país registrou a criação de 15,3 milhões de postos de trabalho (2,5 milhões de ocupações ao ano). Desse total, quase 2/3 foram assalariadas e com carteira assinada (9 milhões de empregos protegidos), o que permitiu retomar a trajetória anteriormente interrompida (industrialização nacional) de construção da sociedade salarial com estatuto social e trabalhista. Devido a isso, a mobilidade ascensional voltou a ganhar força. Para o Ipea (Comunicado da Presidência, número 9, no www.ipea.gov.br), a base da pirâmide social brasileira foi a mais beneficiada, com 10,2 milhões de beneficiados, enquanto o estrato intermediário registrou maior mudança social para 3,6 milhões de pessoas. Mesmo assim, percebe-se que as transformações sociais ocorrem com características distintas, pois para a base da estrutura social os mais beneficiados são não-brancos, têm até 4 anos de escolaridade, dependem mais das ocupações informais ou do sistema de aposentadoria e pensão e residem em pequenos municípios, especialmente nas regiões geográficas menos desenvolvidas do país (Norte, Nordeste e Centro-Oeste). Já o segmento social intermediário mais beneficiado no período recente tem características distintas, pois se trata de indivíduos brancos, com maior escolaridade e com emprego formal e residente nas cidades grandes ou médias, geralmente nas regiões sul e sudeste.
No regime democrático atual, a expansão econômica combinada com políticas sociais permite a retomada da mobilidade social ascendente para praticamente todos os estratos de renda, ainda que isso ocorra de forma diferenciada. Os brancos conseguem subir mais rápido para os segmentos superiores, enquanto os demais transitam da condição de pobreza absoluta para a relativa (pobre em relação ao padrão de riqueza do estrato superior). A melhor compreensão deste processo de mudança social segue a desafiar a inteligência brasileira, bem como a exigir atenção das autoridades governamentais para a necessidade de ações objetivas e de novo tipo, tanto para a redução das distâncias socioeconômicas já constatadas, como a manutenção da mudança social em todo o país.
Marcio Pochmann é presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor licenciado do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas. Escreve mensalmente às quintas-feiras.