artigo de José Carlos de Assis
A Índia desenvolve atualmente o mais ambicioso programa de combate ao desemprego no mundo. Denominado NREGA (na sigla em inglês, Lei Nacional de Emprego Garantido Rural), começou a ser aplicado há dois anos em 200 distritos, e acaba de ser estendido a todos os 530 distritos do país. É um sucesso indiscutível. Estive em janeiro em Nova Delhi, como convidado para um seminário internacional de avaliação do programa, e a opinião unânime, com restrições apenas tópicas, foi de que os resultados positivos ultrapassam largamente as insuficiências.
Em essência, o programa garante 100 dias de emprego por ano, com o pagamento equivalente a um salário mínimo, a toda a pessoa em idade de trabalhar registrada por residência (household). Parece pouco, mas na Índia faz diferença. Mais de 60% da população vive no campo, milhões em condições miseráveis. Os três meses e dez dias de trabalho garantido asseguram a sobrevivência em condições dignas de muitos deles, inclusive como passo intermediário para a conquista de um emprego definitivo no mercado de trabalho normal.
Não se trata apenas, pois, de salário garantido, mas de trabalho garantido. O candidato recebe um cartão de inscrição e, com ele, a indicação para buscar trabalho nos milhares de canteiros de obras e serviços assinalados para isso em todo o país. Quem controla a emissão dos cartões e a assinalação dos trabalhos são os dirigentes dos conglomerados de vilas (Panchayat). Esses dirigentes têm a obrigação legal de fornecer os trabalhos, em geral comunitários, focados principalmente na regeneração ambiental, na preservação de nascentes e rios, na recuperação de terras degradadas, abertura de poços e construção de açudes, assim como atividades de agricultura familiar em propriedades de fazendeiros pobres.
No último ano fiscal, mais de 30 milhões de famílias se beneficiaram do programa. E, como em todo projeto social bem concebido, objetivos paralelos de grande alcance social foram implementados igualmente. Em primeiro lugar, existe o objetivo explícito de se combater a discriminação social num país em que o sistema de castas, embora abolido legalmente, continua sendo uma realidade cultural. Por isso, obrigatoriamente, de 30% a 40% dos beneficiados do programa pertencem às castas dos excluídos (SC/ST).
A mulher, também discriminada em grande parte da sociedade indiana, em especial no meio rural, merece também uma discriminação positiva dentro do NREGA, de forma a lhe garantir as mesmas oportunidades de trabalho e salário dos homens. Isso faz do programa não apenas uma iniciativa contra o desemprego, mas uma ação muito mais ampla no campo social como um todo. A Índia estava devendo isso a seu povo: com um forte crescimento econômico nos últimos anos, as diferenças econômicas e sociais estavam se acentuando, com risco de graves conflitos sociais.
Pelo que se viu no seminário em Delhi, os indianos sentem verdadeiro orgulho do seu programa de emprego garantido. Veem-se no caminho certo. Estão sendo fortemente estimulados por entidades internacionais insuspeitas, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud, co-patrocinador do seminário) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT). Internamente, o programa conta com amplo respaldo político e, mais importante, um verdadeiro consenso de apoio que se manifesta na sociedade civil e na imprensa.
Nós, evidentemente, não podemos copiar o NREGA. Nosso problema de emprego é, sobretudo, urbano, e vem associado a outras questões urbanas de difícil equacionamento, como o das favelas. Entretanto, podemos copiar da Índia a vontade de enfrentar problemas complexos. Se um país com um bilhão de habitantes, ainda predominantemente rural, com 16 idiomas, centenas de dialetos, três grandes religiões e um sistema social tão discriminatório quanto o de castas e o de gênero, pode enfrentar nacionalmente seu mais grave problema social, nós também podemos.
A sugestão que temos discutido, a partir de um seminário internacional realizado no BNDES no início do ano passado, é a instituição no Brasil de um Programa de Emprego Garantido associado a um Programa de Trabalho Aplicado, dirigido inicialmente para as Regiões Metropolitanas, onde se concentra o problema de desemprego. Todo desempregado nessas regiões, sobretudo o não-qualificado ou semi-qualificado, teria direito a trabalhar durante sete meses por ano, recebendo um salário mínimo por mês, em obras e serviços destinados a regenerar as favelas e periferias metropolitanas, ao mesmo tempo em que faria cursos de qualificação profissional de duas horas por dia.
Com isso, atacaríamos num mesmo movimento três problemas sociais graves do Brasil, cada um deles visto como impossível de ser resolvido individualmente: o alto desemprego dos trabalhadores não qualificados e semiqualificados, que se agrava dramaticamente com a atual crise mundial; o problema de habitabilidade das favelas, inclusive a ausência de equipamentos urbanos que, no programa, poderiam ser construídos ou reconstruídos; e a questão da violência e da criminalidade, que é uma decorrência dos dois primeiros. É claro que há imensas dificuldades, mas nenhuma maior que as da Índia.
O NREGA está custando anualmente ao governo central indiano, seu principal financiador, cerca de 0,8% do PIB. Os Estados contribuem marginalmente. Aqui, estimamos que o PEG/PTA viria a custar no seu auge 1,5% do PIB (60% salários, 35% materiais, 5% gerenciamento), com esse custo caindo progressivamente e depois desaparecendo, por ter concluído sua missão, em cinco anos. O escopo do programa está sendo discutido no âmbito dos Ministérios do Trabalho, do Desenvolvimento Social, das Cidades, e Ipea e BNDES.
Do ponto de vista econômico, o PEG/PTA pode ser a chave da recuperação da economia brasileira pelo lado da expansão fiscal. É uma injeção direta de recursos públicos na demanda agregada, de baixo para cima, beneficiando primeiro quem tem mais propensão a gastar – o que estimula o investimento e o emprego, e mais demanda, num círculo virtuoso de retomada do investimento e do crescimento. Assim, se vier a ser aprovado e aplicado, pode tornar-se o nosso caminho das Índias para a reversão da tragédia do desemprego e dos reflexos internos da crise mundial.
José Carlos de Assis é economista e professor, assessor da presidência do BNDES.