Por Flávia Cesarino Costa, de São Paulo
Ana Branco / Folha Imagem
Nélida: “Misturo a colheita da memória
com a invenção, porque é tudo o que sei fazer”
“A minha vida, como a de todo escritor, está possivelmente embutida no meu texto, ali cravada como uma lança. Sobre esta vida, e este texto, só posso referir-me com absoluta relatividade.” Essa é a visão de Nélida Piñon sobre o trabalho da escrita em “Coração Andarilho”, suas memórias recém-lançadas.
Acontece que, se a vida real se faz presente nas ficções, um processo similar acontece nas autobiografias: elas descrevem o passado real, mas são contaminadas pela ficção, que preenche os espaços deixados pelo esquecimento. Por isso, Nélida abre sua autobiografia desacreditando a possibilidade de um relato preciso e de uma descrição fiel do passado. “Meu testemunho é impreciso. Misturo a colheita da memória com a invenção, porque é tudo o que sei fazer.”
A escritora sabe-se presa das recordações dos que a cercam: “Ao ver-me à mercê da fantasia alheia, duvido se há legitimidade em qualquer discurso, incluindo o meu.” Ela desconfia do discurso, mas é tudo o que tem. Sabe que é preciso rechear as memórias fragmentárias com pedaços de ficção. “A felicidade dissolve-se nas lembranças e é forçoso inventá-la.”
Como são em geral as memórias, o texto é escrito num estágio da vida em que as ilusões e pretensões já ficaram para trás, bem como muitas pessoas importantes. Daí o carinho, e talvez certa condescendência, em falar delas.
“Onde buscar uma memória coletiva, quando quase toda a família já não se encontra entre nós?” O relato reverencia com afeto seus pais galegos: Lino e Carmem. Lino morreu quando Nélida tinha 20 anos e muito do livro é uma reflexão sobre a importância do pai em sua vida, já que ele sempre apoiou as opções pouco convencionais da filha – até porque, como ela conta, ele desejava um filho homem, que pudesse ficar famoso. A mãe foi companheiríssima. O relato rememora o ambiente familiar e o amado avô, Daniel – que foi contra o nome dado à neta, sem se aperceber de que Nélida era um anagrama do seu.
Descendente de imigrantes, Nélida descreve como aprendeu com a família a gostar de ser brasileira: “Todos nós, autóctones ou não, provávamos que a mestiçagem produzira um corpo luminoso.” Era uma mistura de sabores e pensamentos, de generosidade e diversidade: “Que paulista, carioca, gaúcho podia jactar-se de sua antiguidade, em detrimento do nordestino, do pau-de-arara, do galego? Se para credenciar-se como brasileiro era forçoso ler Gregório de Matos e deliciar-se. Mirar o que jaz no subsolo do espírito e preservar sua riqueza. Defender um sentimento quase inefável que perdura em nós a despeito das desilusões.”
A autora carioca viveu a infância em Vila Isabel e depois Copacabana. A família também passou dois anos na região de origem, na Galícia (Espanha), quando Nélida tinha 10 anos. Essa experiência bicultural foi fundamental para entender o mundo como um teatro de diversidades e acender seu desejo de conhecer lugares diferentes, reais ou no reino da imaginação. Leitora precoce tanto de clássicos como de literatura barata, ela se enamorou, desde cedo, das possibilidades da escrita.
A primeira metade do livro é uma saudosa rememoração da infância e da vida familiar, talvez um pouco comportada, mas impregnada de alegria. Já a segunda é dominada por uma melancolia que retira do texto muito das vivências pessoais, aparecendo como flashes de uma existência que continuou depois de perdas importantes. Memórias têm um valor que extrapola o texto, que tem a ver com quem escreve. A obra pode ter defeitos, uma vez que é a celebração de uma vida rica e produtiva.
“Coração Andarilho” – Nélida Piñon – – Record 240 págs., R$ 38,00 / BBB