18 ago 2019
Artigo
O ministro da economia Paulo Guedes, durante a abertura do seminário Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, promovido pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), em Brasília/DF, mostrou que não sabe nada sobre a história do Brasil e menos ainda sobre o movimento sindical.
Ele disse, entre outros disparates, que: “Sobrava [dinheiro] para o governo com bastante impostos, sobrava para as montadoras […] e sobrava também para os sindicalistas do ABC paulista que ganhavam 10, 12, 13 vezes mais que a média do trabalhador brasileiro porque se não pagasse eles iam para a porta da fábrica e ameaçavam quem quisesse trabalhar e quebravam tudo e brigavam com a polícia e aí, parecia que era coisa da ditadura. Não, a ditadura tava garantindo aqueles salários extraordinários para aquele grupo seleto de sindicalistas. Quem conhece a economia sabe quem era parceiro de verdade da ditadura militar”.
Sua fala leviana insinua que o objetivo das manifestações sindicais era garantir os salários dos sindicalistas, que a ditadura garantia esses salários e que, por isso, sindicalistas e ditadura eram parceiros.
Haja criatividade para inventar uma história dessas! Queria saber de onde ele tirou essas informações. Existe algum caso que possa confirmar as acusações de Paulo Guedes?
Há mais de dez anos meu trabalho é dedicado à história do movimento sindical. Como coordenadora do Centro de Memória Sindical, já me debrucei sobre a história de diversos sindicatos e sobre diversos períodos da história.
Existem sim visões divergentes no interior do movimento. Existe um embate ideológico. Mas nunca em minhas pesquisas ou entrevistas encontrei algum fato que se aproxime dos delírios de Paulo Guedes.
Muito pelo contrário. A história das organizações de trabalhadores brasileiros é uma história de luta, repressão e resistência.
Vamos, então, resgatar pontos importantes desta história. Talvez ajude o ministro a começar a entender a classe trabalhadora brasileira. Primeiramente, vale caracterizar o perfil do patronato no início do século 20, quando não existiam os sindicatos da forma como conhecemos hoje.
Começo citando uma entrevista que o jornalista André Cintra fez com o ex-senador italiano e jornalista, José Luiz Del Roio[1], sobre a greve de 1917. Segundo Del Roio, naquela época, a burguesia industrial brasileira tinha uma “concepção escravocrata” do trabalho. “Tanto é que os primeiros italianos que vieram para cá chamavam esses trabalhadores de squiave bianque, os escravos brancos”, disse ele. As reivindicações dos trabalhadores, na época, eram elementares: “Não eram políticas, eram estritamente econômicas. Mais do que isto, eram de sobrevivência”.
Esta concepção escravocrata fica clara nas informações levantadas pelo historiador Felipe Loureiro em sua tese de mestrado[2]. Nela Loureiro resgatou um documento de 1930, que apresenta contestações dos burgueses têxteis paulistas com relação à Lei de Férias, de 1925, conquistada através de greves e manifestações de trabalhadores. O documento, um Memorial apresentado ao Sr. Ministro do Trabalho Indústria e Comércio pelo Centro Industrial de Fiação e Tecelagem de Algodão, de 28/11/1930, afirma que: “o cérebro do operário não despende energia, logo eles não precisam de descanso”, que “o lar sem conforto do operário não lhe proporcionará descanso” e ainda que o “trabalho na fábrica era leve e suave”. Isso está bem documentado.
Regulamentação da jornada de trabalho, 13º, um piso mínimo para os salários –o salário mínimo, descanso semanal remunerado, enfim, condições que proporcionam dignidade ao trabalhador, foram direitos conquistados a partir do crescimento, consolidação e processo de politização do movimento sindical depois de 1930.
Não venha o ministro dizer que tais conquistas impediram (ou impedem) o crescimento do País. Como ele sustentaria tal afirmação frente ao fato de que, sob a égide da CLT, o parque industrial e o mercado consumidor se expandiram, grandes montadoras instalaram, Juscelino realizou seu sonho desenvolvimentista etc. etc.?
Vamos comentar agora a relação dos sindicalistas com o golpe militar, que Guedes tentou classificar como “parceria”.
A partir do Ato Institucional Número Um, ou AI-1, de 9 de abril de 1964, os militares intervieram nos sindicatos e cassaram suas diretorias. Começa por aí.
Em julho de 1965, a Lei nº 4.725, que estabeleceu normas para os processos dos dissídios, instituiu uma política de arrocho salarial. Segundo o Dieese, esta política reduziu o salário do trabalhador sem perspectiva de reposição da inflação que girava em torno de 30%.
Em abril de 1968, a greve dos metalúrgicos de Contagem/MG foi a primeira a afrontar a ditadura, com 1.200 operários reivindicando reajuste salarial. Em julho daquele ano, foi a vez dos metalúrgicos de Osasco/SP, com reivindicações trabalhistas e também políticas. Todos os sindicalistas suspeitos de participarem da greve de Osasco foram perseguidos e presos, ou entraram para a clandestinidade. Acho que está claro que não havia parceria com a ditadura.
Outro fato que mostra bem a animosidade que havia entre a ditadura e o movimento sindical, que Paulo Guedes deve conhecer, foi o assassinato do metalúrgico Manoel Fiel Filho. Em janeiro de 1976 ele foi levado da fábrica onde trabalhava, a Metal Arte Ind. Reunidas, por agentes do DOI-CODI/SP, para prestar depoimento. Preso, Fiel Filho, que era filiado ao Partido Comunista e ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, foi torturado até a morte.
O AI-5, de 1968, foi uma barra pesada para os sindicalistas que lutavam por melhores condições de vida para os trabalhadores. Acho que o Guedes deve saber disso. Os militares no poder foram tão truculentos, sobretudo durante o AI-5, e exageraram tanto na tortura e nos assassinatos, como o do Fiel Filho, e também de Vladimir Herzog e de Alexandre Vannucchi Leme, que no fim da década de 1970 a ditadura já estava desgastada e a Anistia e a abertura democrática já pareciam inevitáveis. Não foi à toa que a decadência daquele famigerado regime se refletiu nas memoráveis greves iniciadas no ABC paulista a partir de 1978. Vale ressaltar que o estopim para aquelas greves foi o falseamento dos índices oficiais da inflação de 1973, feito pela equipe econômica do general ditador Emílio Garrastazu Médici e denunciado pelo Dieese em julho de 1977.
Estas são apenas algumas histórias que mostram que, ao contrário do que afirmou Guedes, o movimento sindical não apenas não se aliou ao regime como lutou bravamente contra ele. Existem outras que não vou relatar aqui para não me alongar.
As afirmações sem nexo do ministro no seminário do STJ me fazem pensar que a crise de identidade que ele vive não lhe permite enxergar a realidade e compreender suas raízes históricas. Ele se diz liberal, mas trabalhou no governo do ditador sanguinário Augusto Pinochet e agora seu chefe é um ex-deputado do baixo clero, que indica o próprio filho para ser embaixador nos EUA e cujo ídolo é um notório torturador da ditadura militar. Não deve ser fácil para o pretenso liberal Guedes suportar os intervencionismos e a histeria ideológica do governo Bolsonaro.
Termino com uma frase sábia do jornalista José Luiz Del Roio, naquela entrevista que citei a alguns parágrafos. Segundo ele: “o que os trabalhadores conquistaram, eles nunca podem considerar conquistas definitivas. E se o Estado for oligárquico, escravocrata, eles estarão sempre disponíveis a fazer voltar para trás as conquistas operárias. Sempre! A história está marcada por isso, sobretudo num país como o Brasil, com uma elite escravocrata de origem e de mentalidade”.
[1] Entrevista realizada em 2017 para a revista do Centro de Memória sobre a Greve Geral de 1917.
[2] Nos fios de uma trama esquecida: a indústria têxtil paulista nas décadas pós-depressão, 1929-1950, de 2006.
Carolina Maria Ruy é pesquisadora, jornalista e coordenadora do Centro de Memória Sindical.
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