22 nov 2017
História
Para pesquisadores não é possível se desfazer de cem anos de lutas e consciência social
Uma das principais iniciativas da celebração dos 100 anos da primeira greve geral do Brasil, a de 1917, ocorrida em São Paulo, foi o lançamento de uma revista pelo Centro de Memória Sindical. Nesta entrevista ao site Rádio Peão Brasil, os jornalistas André Cintra e Carolina Maria Ruy falam sobre a importância do histórico movimento grevista e sobre alguns conteúdos em destaque na publicação.
Por Val Gomes
Rádio Peão Brasil: Por que a greve de 1917 deveria ser e não é prioridade nas escolas e nos grandes meios de comunicação?
André Cintra: Não é um problema restrito à Greve Geral de 17. A chamada “História oficial”, seguida e potencializada pela grande mídia, atribui ao povo brasileiro – e, em especial, aos trabalhadores – um papel secundário, quase irrelevante. Ao contar os fatos épicos – os marcos da construção do Brasil –, essa corrente do pensamento nacional dilui a participação do povo, das massas, do “herói coletivo”. Em vez disso, nossos vultos históricos são heróis individuais, invariavelmente ligados às elites. Não se dá destaque nenhum à força e à importância das insurreições contra as classes dominantes. Não se jogam luzes em episódios emblemáticos da luta de classes no País. Aliás, em muitas passagens, parece que sequer houve luta, mas apenas um acordão pensado, formatado e viabilizado “por cima”.
RPB: Uma visão elitista?
André Cintra: Sim, é uma narrativa elitista, conservadora e errática. Um segundo aspecto foi brilhantemente ressaltado pelo brasilianista Stuart Schwartz. Segundo ele, os historiadores brasileiros, desde Capistrano de Abreu no século 19, tendem a ressaltar o que deu errado na trajetória do Brasil – as crises, os impasses, os fracassos, as insuficiências. Tal como os jornalistas da grande mídia, esses historiadores estariam a serviço de uma visão permanentemente pessimista, eivada de rancor e desgosto. Querem nos fazer crer que é inútil lutar – e que o País não tem vocação para o progresso. No Ocidente, ocorre o inverso. Veja que os norte-americanos criaram até a mítica do “destino manifesto” – a crença de “povo escolhido por Deus” – para justificar sua primeira grande ofensiva imperialista na América.
Carolina Maria Ruy: O ensino de história nas escolas é muito genérico. Este período de transição que vai da proclamação da República e do fim da escravidão até a década de 1930 é transmitido de forma particularmente superficial, limitando-se à oligarquia do café com leite e à política de imigrações. O destino desses ex-escravos e dos imigrantes recém chegados, naquela época, é bem obscuro. Como se o povo fosse um “sujeito oculto”. Estudando a época minuciosamente vemos que este período foi de grandes manifestações dos trabalhadores, não apenas em 1917, mas desde 1889 houve muitas greves dos portuários, marceneiros, chapeleiros, têxteis –sobretudo contra o alto custo de vida, contra a carestia, e por aumento salarial. O registro desta, como de outras importantes greves, foi justo na grande imprensa, que, a despeito de qualquer ideologia social, tem bons jornalistas. Neste ano a greve foi lembrada pelos grandes jornais.
RPB: Em vez de estarmos celebrando este patamar civilizatório, com pautas ainda mais progressistas, a elite e seus aliados políticos estão impondo retrocessos que alcançam o período da escravidão. O que fazer?
Carolina Maria Ruy: A história não caminha em linha reta. Mas, no saldo geral, há uma evolução. Os estudos nos permitem observar isso. Avançamos muito em cem anos, com relação à situação dos trabalhadores. E, quanto a isso, o jornalista João Guilherme Vargas Netto, levanta a importância do movimento sindical como um instrumento civilizador nas relações sociais. Para ele “o brasileiro hoje é muito mais cidadão do que era em 1917”. Deparamo-nos hoje, novembro de 2017, com medidas governamentais que aludem ao passado, à República Velha e até ao Império, como a revogação de diretos trabalhistas e o afrouxamento do combate ao trabalho escravo.
RPB: Voltaremos à mesma situação de 1917?
Carolina Maria Ruy: Acho simplista dizer que voltamos ou voltaremos à mesma situação de 1917. Também não acredito que estas medidas, de tão esdrúxulas, são definitivas. Está havendo, e isso deve se reforçar, uma reação dos Sindicatos e movimentos sociais, contra elas. Além disso, estamos a um ano das eleições gerais. Pré-candidatos à presidência, Lula, Manuela e Ciro Gomes já afirmaram que, se ganharem as eleições, revogarão as medidas. Isso mostra como elas são antissociais e queimam a imagem dos políticos que as implementam. Mas, mesmo que a reforma entre em vigor da pior forma, não é possível se desfazer de cem anos de evolução. Há um ganho de organização, de experiência e de consciência social.
RPB: Qual o alcance esperado para a revista?
Carolina Maria Ruy: Esperamos, com a revista, divulgar não só o registro da greve, mas o contexto em que ela ocorreu. A ideia é que ela chegue às bases de trabalhadores, nas estruturas dos sindicatos, e nas suas direções, que podem incorporar essa efeméride em seus discursos e também refletir sobre a história dos trabalhadores brasileiros.
RPB: Quais foram as informações ou fatos revelados nas entrevistas e pesquisas que mais lhes surpreenderam e despertariam o interesse pela leitura da Revista?
André Cintra: Destaco o pioneirismo de uma greve geral. Foi a primeira vez que uma paralisação no Brasil atingiu proporções tão elevadas e se constituiu num grande evento político, atraindo a atenção – e também a solidariedade – do conjunto da população. Muitas categorias industriais – a começar pela têxtil – adeririam. Comércios e teatros fecharam as portas. Os jornais paulistas, salvo raras exceções, noticiaram o andamento dos fatos com certa simpatia ou neutralidade. Marx dizia que o proletariado, por natureza, forma uma “classe em si”, mas não uma classe “para si”. Só com a luta é que a se pode despertar a consciência e unir esses trabalhadores em torno de interesses comuns – para si. Foi isso o que houve na Greve de 1917. O proletariado de São Paulo se reconheceu, de forma inédita, como parte de uma mesma, valorosa e potente classe social.
RPB: E a participação feminina na Greve de 1917?
André Cintra: É impossível contar, contextualizar ou analisar a Greve de 17 à margem das contribuições das mulheres. Já havia o exemplo das operárias de Petrogrado, na Rússia, que saíram às ruas em março de 1917 para exigir “pão e paz”, deflagrando a primeira fase da Revolução Russa. Em São Paulo, apenas três meses depois, coube às operárias do Cotonifício Crespi o início dos protestos contra, basicamente, as péssimas condições de trabalho e a carestia. As mulheres respondiam pela maior parte da mão de obra nas fábricas têxteis, mas ganhavam menos que os homens e ainda sofriam com o assédio dos patrões. Elas eram participantes ativas nas mobilizações, fortaleciam a resistência, ajudavam a construir a pauta de reivindicações, divulgavam a greve junto à opinião pública e também eram reprimidas. A vitória política dos grevistas de 17 ajudou não apenas a impulsionar o movimento sindical e a fortalecer a luta pelos direitos trabalhistas – mas também a pôr as mulheres no radar da agenda pública. O feito das trabalhadoras que pararam São Paulo há cem anos foi anterior à fundação, em 1922, da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que é considerada um marco do movimento feminista no País.
RPB: A greve de 1917 reuniu diversas categorias e lideranças. Esta unidade também foi relevante?
André Cintra: A unidade foi posta acima das diferenças. A partir do pontapé inicial dado pela União dos Operários em Fábrica de Tecidos, a greve geral contou com diversas reuniões unitárias e assembleias massivas – sem contar a formação do Comitê de Defesa Proletária. Os defensores do anarquismo estavam à frente do movimento, mas foram flexíveis a ponto de debater com outras representações e convergir em ideias. No século que sobreveio à Greve de 1917, poucas vezes se viu uma unidade sindical tão madura, consequente e vitoriosa.
RPB: Vocês destacaram também o apoio da Imprensa à Greve Geral.
André Cintra: Para além do apoio dos jornais anarquistas e alternativos, a paralisação angariou a adesão de diversos veículos tradicionais. Quando as negociações entre trabalhadores e patrões chegaram a um impasse, emergiu um inusitado Comitê de Imprensa como instância de articulação reconhecida pelas duas partes. Até mesmo os poderosos “O Estado de S. Paulo”, “Correio Paulistano”, “Jornal do Comércio” e “A Gazeta” se envolveram abertamente na mediação, levando as reivindicações finais dos manifestantes aos empresários. Um anúncio publicado simultaneamente em todos esses jornais assumia as “simpatias” da mídia “pela causa do operariado”. Foi um momento singular, raríssimo, em que a imprensa brasileira esteve do lado certo e se distinguiu por uma posição avançada.
Carolina Maria Ruy: Antes de iniciar esse projeto eu tinha uma noção vaga sobre a greve. Conhecer toda a complexidade da organização foi muito revelador. Diversas passagens chamam a atenção, como a repercussão em Curitiba, a participação das mulheres, a participação dos jornalistas no processo de negociação, bem como a quantidade expressiva de mortos que a greve infelizmente deixou. Buscamos, na revista, levantar outros
acontecimentos importantes daquele ano não por uma razão estética, mas para passar uma noção do patamar cultural e social em que o Brasil e mesmo o mundo se encontravam. Neste ponto gostaria de ressaltar a criação da Vila Maria Zélia naquele ano, que foi uma ação social importante protagonizada pelo industrial Jorge Street e que contrastava com as ações duras do Rodolfo Crespi, dono do Cotonifício Crespi, onde começou a Greve.
RPB: Que critérios você teve, Carolina, para definir quem seriam os entrevistados e colaboradores?
Carolina Maria Ruy: Buscamos entrevistar pessoas que, claro, tivessem um conhecimento profundo sobre o tema, e que também pudessem problematizá-lo em seu contexto social. O critério também, para os entrevistados, foram pessoas que pudessem abordar o tema da greve com diferentes enfoques. Para realizar as entrevistas convidei o André Cintra, que conheço já há mais de dez anos, com quem já trabalhei em outros projetos, porque sei que, como jornalista, ele teria capacidade e sensibilidade para se envolver com o tema e extrair a visão mais profunda e honesta de cada entrevistado. Deu tão certo que no fim ele mesmo propôs e realizou a entrevista com a Gláucia Fraccaro, que é parte fundamental da revista. Contamos também com outros colaboradores que deram o tom de diversidade e engrandeceram a revista, com o Douglas Nascimento, do site São Paulo Antiga, e o Rogério Galindo, da Gazeta do Povo, de Curitiba.
Saiba mais:
Com tiragem de 25 mil exemplares, com 23 mil já compradas por entidades sindicais, a revista será vendida pelo site do Centro de Memória Sindical .
A jornalista Carolina Maria Ruy é coordenadora do Centro de Memória Sindical e o jornalista André Cintra é assessor de comunicação da FITMETAL – Federação Interestadual de Metalúrgicos e Metalúrgicas do Brasil.
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