30 abr 2009
Notícias
Cristine Prestes, de São Paulo
No fim do ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) começou a dar fim a um longo inferno astral vivido pelos banqueiros no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). Durante quase duas décadas, desembargadores gaúchos impuseram derrotas definitivas às instituições bancárias no Estado, só reversíveis em tribunais superiores. Provenientes do extinto Tribunal de Alçada, esses magistrados formaram lá um núcleo de direito alternativo – em uma época de poucos direitos e Judiciário nada independente – disposto a interpretar a lei de forma a favorecer os mais fracos, julgando em prol da justiça social. Batizado de “ativismo judicial”, esse tipo de conduta proveniente da Justiça esteve, até pouco tempo atrás, restrito ao extremo sul do Brasil. Agora, dá sinais de disseminação pelo país e por outras searas do direito.
Os casos mais recentes de ativismo judicial, como era de esperar, surgiram na esteira da crise econômica – que desde o seu início contrapõe bancos, empresas e trabalhadores no Poder Judiciário. Em um dos vários litígios decorrentes da crise, a Justiça trabalhista determinou a reintegração de 4.720 trabalhadores demitidos pela fabricante de aviões Embraer em fevereiro – decisão só revertida no Tribunal Superior do Trabalho (TST). A mesma situação foi vivida pela Usiminas, em Minas Gerais, impedida de dispensar trabalhadores por uma liminar – que caiu diante de um acordo fechado na semana passada.
Em comum, as decisões fundamentam-se no princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição Federal. “Ainda que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) tenha sido feita com o objetivo claro de proteger os trabalhadores, os juízes não estão mais satisfeitos com ela”, diz o advogado Luciano Timm, sócio do escritório Carvalho, Machado, Timm & Deffenti Advogados e um estudioso da relação entre o direito e a economia.
Apu Gomes / Folha Imagem |
Funcionários da Embraer em ato contra demissões: a Justiça determinou a reintegração de 4.720 demitidos pela empresa, decisão depois revertida pelo Tribunal Superior; no campo, as atividades do MST resultam em decisões judiciais polêmicas e despertam reações passionais,… |
Decisões como essas são novidade até mesmo na Justiça trabalhista, que historicamente carrega a justificada fama de favorecer a parte mais fraca da relação de emprego. Ao recente “ativismo judicial” dos juízes do trabalho somam-se outras modalidades – algumas já experimentadas no Brasil em um passado não muito remoto. Um exemplo recente vem de Mato Grosso. No fim do ano passado, na véspera do início da colheita de grãos, a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado (Famato) conseguiu na Justiça uma liminar que impediu os bancos de arrestar máquinas e equipamentos dados em garantia em contratos de financiamento da safra até 30 de junho deste ano e de inscrever os nomes dos devedores em cadastros de proteção ao crédito. A decisão, dada em uma ação civil pública, beneficia todos os produtores rurais filiados à federação e aos sindicatos rurais de 84 municípios mato-grossenses.
Ainda que o juiz José Zuquim Nogueira, que concedeu a liminar, tenha fundamentado sua decisão no princípio da razoabilidade – segundo ele, para assegurar a continuidade da atividade econômica e permitir que os produtores façam a colheita e possam quitar suas dívidas -, a decisão preocupa. “É como um ´subprime´ vindo pelo direito: se a garantia é esvaziada, o financiamento enfraquece”, diz Timm.
A prática demonstra que a teoria é verdadeira. No passado, as consequências de decisões semelhantes foram desastrosas. Um dos maiores exemplos vem de Goiás, no episódio que se tornou conhecido como “caso da soja verde”. Durante as safras de 2002/2003 e de 2003/2004, o preço da saca atingiu picos elevados no mercado à vista, muito acima do definido nos contratos de venda antecipada da soja fechados com tradings ou com as indústrias esmagadoras.
Diante da expectativa de receber menos do que poderiam na época da colheita, os produtores foram à Justiça com o objetivo de romper os contratos – e em alguns casos, a Justiça, fundamentada no princípio da função social do contrato, entendeu que eles teriam se tornado injustos para uma das partes. No ano seguinte, em 2004, a comercialização antecipada da safra esperada de soja em Goiás caiu imensamente, comprometendo o financiamento da produção do grão. “Os contratos futuros desapareceram”, afirma Bruno Salama, professor de direito e economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Apenas em 2006, após algumas decisões desfavoráveis aos produtores no STJ, os contratos voltaram a ser celebrados, financiando 20% da safra de 2005/2006 – antes do episódio, esse índice chegou a 80%.
“Partir para uma grande socialização tem um efeito perverso”, diz Salama. “É um efeito bumerangue: ao privilegiar uma parte de um contrato, o juiz cria um desincentivo para todo um mercado.”
Há quem tema que o ativismo judicial experimentado no campo se dissemine para as cidades e atinja outro tipo de garantia: os imóveis, no caso dos contratos de financiamento por meio do mecanismo da alienação fiduciária. De acordo com o advogado Rodrigo Bicalho, sócio do escritório Bicalho e Mollica Advogados e especialista em mercado imobiliário, já começam a aparecer decisões mais conservadoras em relação à concessão de liminares que permitam a retomada de imóveis financiados por meio da alienação fiduciária em casos de inadimplência.
Conforme a Lei nº 9.514, de 1997, a alienação fiduciária permite que o bem financiado seja a própria garantia do financiamento – ou seja, o consumidor tem a posse, mas não a propriedade do bem. Em caso de não pagamento das parcelas, a legislação prevê a reintegração de posse em 60 dias por meio de uma liminar concedida pela Justiça. Até então, a retomada dos imóveis, pelo sistema da hipoteca, demorava anos – e impedia a expansão do crédito imobiliário no país. “Agora começam a aparecer decisões, ainda que sejam a minoria, que determinam um exame mais detalhado do caso antes da retomada da posse” diz Bicalho.
Embora tenha um impacto importante na concessão de crédito – um dos maiores entraves ao desenvolvimento econômico do país -, o ativismo judicial não se limita a relações contratuais ou trabalhistas entre as partes. Segundo o advogado Luciano Timm, há manifestações no mesmo sentido em questões que envolvem direitos sociais e direitos de propriedade – e exemplos não faltam para ilustrar o comportamento de juízes em ambas as searas.
Tema que desperta reações passionais, seja no mais simplório dos brasileiros, seja no titular do mais alto posto do Poder Judiciário – o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) -, a atuação do Movimento dos Sem-Terra (MST) tornou-se ainda mais polêmica do que sua própria natureza em algumas decisões judiciais recentes. Nelas, juízes de primeira e segunda instâncias de Estados como Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Paraná ou Goiás têm negado liminares de reintegração de posse de áreas invadidas pelo movimento sob o argumento de que, se a propriedade tem uma função social, como prevê o Código Civil de 2002, a posse também a tem – logo, o proprietário deve comprovar que usa a terra com essa função, de acordo com critérios estabelecidos pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Se o novo Código Civil deu subsídios aos juízes para aplicarem princípios como o da função social do contrato e da propriedade, a Constituição Federal de 1988 fez o mesmo no que se refere às políticas públicas ao incluir em seu texto princípios como o da dignidade humana e o da justiça social. O resultado é uma série de decisões judiciais garantindo direitos individuais que acabam, na prática, por prejudicar políticas públicas – ou seja, coletivas.
O maior exemplo, e talvez o mais contundente em número de decisões judiciais, é o das ações que pedem o fornecimento de medicamentos de alto custo que não estão na lista do Sistema Único de Saúde (SUS). As liminares, que determinam o bloqueio das contas dos governos estaduais e municipais para custear os remédios, proliferam no país inteiro, desestruturando as contas do poder público e comprometendo o custeio do sistema de saúde. A avalanche de decisões é tanta que o Supremo deu à causa status de repercussão geral – que suspende todas as ações em tramitação no país até um julgamento definitivo do pleno da corte em casos considerados de relevância política, econômica, social ou jurídica – e fará uma audiência pública, a terceira na história da corte, para debater o tema antes de proferir sua decisão.
“Qualquer política pública prevista na Constituição Federal e que serve para todo o país tem que ser julgada somente pelo Supremo”, diz o advogado e professor Arnoldo Wald. Segundo ele, ainda que a Carta brasileira seja moderna e ampla, não prevê todas as possibilidades, que também variam conforme a época e as necessidades da sociedade. “O ativismo judicial, então, é apenas um preenchimento das lacunas da lei”, afirma.
Wald defende, no entanto, que essa regulamentação da legislação pela via judicial seja feita apenas pelo Supremo e não por magistrados de instâncias inferiores no julgamento de casos individuais. E o Supremo tem, recentemente, cumprido esse papel ao criar regras para situações ainda não definidas da Constituição – como no caso da greve do funcionalismo público. Prevista na Carta, mas nunca regulamentada pelo Congresso Nacional, a greve dos servidores foi julgada constitucional pelo Supremo, que, na ausência de regras, definiu a aplicação da lei de greve do setor privado até que haja uma legislação própria. Para Bruno Salama, porém, ainda que a lei “criada” pelos juízes seja, em geral, melhor que a criada pelos legisladores, esbarra no problema da falta de legitimidade democrática da Justiça – motivo maior das atuais críticas sobre a atuação do Poder Judiciário brasileiro.
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