No dia 24 de junho de 2015, o Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo denunciou à Justiça Federal sete ex-agentes da ditadura militar (1964/1985) pela morte do metalúrgico Manoel Fiel Filho, em 1976, sob as acusações de homicídio doloso qualificado e falsidade ideológica.
Natural de Quebrângulo (AL), Manoel Fiel Filho vivia em São Paulo desde a década de 1950. Antes de se tornar prensista na metalúrgica METAL ARTE INDUSTRIAS REUNIDAS SA, foi padeiro e cobrador de ônibus. Era casado com Thereza de Lourdes Martins Fiel e tinha duas filhas. Se ainda estivesse vivo Fiel Filho teria 88 anos. Mas foi morto sob tortura, aos 49 anos de idade no dia 17 de janeiro de 1976.
Segundo o MPF, Manoel foi detido um dia antes de sua morte, por causa da indicação de um preso político que relatou, sob intensa tortura, ter recebido do metalúrgico exemplares do jornal A Voz Operária, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que estava clandestino naquele contexto. Entretanto não havia qualquer antecedente criminal, inquérito policial instaurado, flagrante delito, ou investigação que o envolvia. Não havia nem ordem escrita, nem mesmo comunicação à autoridade competente sobre a detenção. Nestes termos, colocados pela denúncia do procurador da República, Andrey Borges de Mendonça, além de arbitrária a prisão foi ilegal.
Manoel Fiel Filho
“O omelete está feito”
Levado para o Destacamento de Operações de Informações (DOI) do 2º Exército, o operário foi submetido a graves sessões de tortura até ser morto por estrangulamento. Os demais presos do Destacamento afirmaram ter ouvidos os gritos de dor e pedidos de clemência de Manoel. A denúncia relata que: “com a sua voz cada vez mais cansada, as torturas não cessaram e sequer diminuíram. Finalmente, cerca de quinze minutos depois, sucumbindo após intensos maus tratos, Manoel Fiel Filho morreu no início da tarde do dia 17 de janeiro de 1976”. Uma das testemunhas ouviu um policial comunicar a morte da vítima com a seguinte expressão: “Chefe, o omelete está feito”.
O Ministério Público apurou que Manoel foi, então, levado já sem vida para a cela forte do DOI-CODI, para criar a versão de suicídio. Os agentes amarraram meias em seu pescoço e simularam um enforcamento, forjando inclusive a seguinte frase de arrependimento da vítima na parede: “mãe, perdoe este filho que tanto errou ore por mim mamãe. Deus pai todo poderoso nos perdoe senhora S. Catarina”.
Os outros presos políticos afirmaram que todos foram levados para vê-lo, e que, à porta, estavam dois homens “com características asiáticas”. Um deles disse: “observe, bem, esse louco suicidou, não havia necessidade para isso, se vocês disserem o contrário lá fora, nós temos o endereço de um por um e vocês vão pagar pelas consequências”.
Caixão lacrado
Na noite seguinte, um agente, dirigindo um veículo Dodge Dart, parou em frente à casa do operário e, diante de sua mulher, suas duas filhas e alguns parentes, disse secamente: “O Manoel suicidou-se. Aqui estão suas roupas”. As autoridades só entregaram o corpo com a condição de que fosse sepultado o mais rapidamente possível e que ninguém falasse nada sobre sua morte.
Desta forma, no dia 18, domingo, às 8h da manhã, ele foi sepultado em cerimônia rápida com o caixão lacrado, sem que seus familiares pudessem verificar as evidentes marcas de tortura.
Uma nota oficial emitida em 19 de janeiro informou que o operário havia se enforcado na cela com as próprias meias. O Inquérito Policial Militar foi concluído em pouco mais de 30 dias, e arquivado sob o fundamento de que as provas eram suficientes para comprovar a hipótese de suicídio.
Entretanto, a denúncia de Andrey Borges de Mendonça afirma que uma nota publicada pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo à época, desmentiu a versão oficial alegando que quando a vítima foi presa, calçava chinelo sem meias.
De fato, logo que tomou conhecimento da morte do colega, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, Joaquim dos Santos Andrade enviou um telegrama ao governo federal exigindo apuração dos fatos e punição aos culpados. No telegrama, datado de 20 de janeiro de 1976, Joaquinzão manifestou “veemente protesto pelo ocorrido” e cobrou “enérgicas e imediatas providências” para “apuração dos fatos e punição rigorosa seus responsáveis”.
Os denunciados
Em 1980, por meio de ação cível proposta pela viúva da vítima, a Justiça Federal condenou a União Federal a indenizar a família, reconhecendo o caso de homicídio através de tortura. Anos depois, em 30 de maio de 1996, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) reconheceu Manoel Fiel Filho como beneficiário da Lei 9.140/1995, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.
Mas só agora, a partir da denúncia 49723/2015, do Ministério Público Federal e da Procuradoria da República em São Paulo os responsáveis poderão responder pelo crime.
Os denunciados Tamotu Nakao, chefe da equipe de interrogatório e Oficial de Permanência, Edevarde José, Delegado de Polícia, com o auxílio dos carcereiros Alfredo Umeda e Antonio José Nocete, todos sob ordem do comandante responsável pelo destacamento, Audir Santos Maciel, além de outras pessoas até agora não totalmente identificadas, deverão responder pelo crime de homicídio triplamente qualificado e falsidade ideológica.
Também é apontada a responsabilidade dos peritos que emitiram laudos atestando a ausência de sinais de agressão no corpo do metalúrgico “apesar dos evidentes hematomas principalmente no rosto e nos pulsos da vítima”. O MPF pediu a perda do cargo público dos denunciados, cancelamento de eventual aposentadoria e cassadas medalhas e condecorações recebidas.
A abertura do processo contra os denunciados ainda precisa do aval do juiz da vara para onde a denúncia for encaminhada.
Consequências políticas
A morte de Manoel Fiel Filho completava uma sequência de mortes suspeitas, forjadas pela ditadura, que sensibilizaram a opinião pública. Destas destacam-se a morte do líder estudantil Alexandre Vannucchi Leme em 17 de março de 1973, e do jornalista Vladimir Herzog, em 25 de outubro de 1975, todas sob circunstancias semelhantes, com o uso da tortura, baseadas na paranoia militar em manter-se no poder.
O crime contra o operário não mobilizou multidões na missa de sétimo dia ou no enterro, como ocorrera com Vannucchi e Vlado. Entretanto, teve consequências políticas diretas, que repercutiram nos descaminhos do regime.
Em seu livro A ditadura encurralada (2004) o jornalista Elio Gaspari descreve a reação do então presidente da República, o general Ernesto Geisel, com relação à notícia das circunstancias da morte de Fiel Filho. Ele começa sua descrição afirmando que “na noite de 18 de janeiro de 1976 Geisel não dormiu direito, atordoado com a notícia e pensando em alguma solução”. Segundo depoimento do próprio Geisel, citado no livro, foi naquela noite que o presidente decidiu exonerar o general Ednardo d’Ávila Melo do comando do II Exército de São Paulo.
Segundo Gaspari “o presidente lançou-se ao primeiro choque frontal e público com um chefe militar. (…) Foi ao choque sem deixar espaço para negociação, nem mesmo para salvar as aparências. Sumaria, a demissão negou a Ednardo o direito de argumentar que passara o fim de semana fora de São Paulo. Imediata estabeleceu a relação de causa e efeito com a morte do operário. (…) O Regime acumulara em torno de trezentos mortos e cerca de seis mil denúncias de tortura. Mas, na noite de 18 de janeiro de 1976 o problema do general Ernesto Geisel relacionara-se com a disciplina militar, não com os direitos humanos” (Gaspari, 2004).
A decisão de Geisel surpreendeu o Ministro do Exército, Sylvio Frota, que ficou encarregado da demissão. A cautela que permeou aquele episódio mascarava uma crise de grandes proporções que se abatera sobre o governo militar. Crise que chegaria ao ápice com a demissão do próprio ministro Sylvio Frota, em 12 de outubro de 1977. Expoente da linha dura do regime Frota, que ambicionava ocupar a cadeira de presidente, foi substituído pelo general Fernando Belfort Bethlem, então comandante do III Exército. Foi o sinal definitivo de que a linha dura entrara em decadência. Foi também o começo da luta pela anistia, que só viria em 1979.
Carolina Maria Ruy é jornalista e coordenadora de projetos do Centro de Memória Sindical