João Carlos Juruna
O trabalho dos entregadores via aplicativos coloca em evidência a precarização do trabalho e o ataque, pelo governo da direita, contra a legislação trabalhista e social e nos remete ao início do século 20, quando os trabalhadores, destituídos de qualquer direito e com frágil ou nula representação, submetiam-se às regras impostas pelos patrões.
Naquela época não havia legislação trabalhista, nem social, e a organização sindical era proibida. O trabalhador, se quisesse trabalhar, tinha que seguir as regras impostas: horário, salário, condições precárias. Quem não aceitava, não trabalhava.
Essa situação de submissão radical só começou a ser superada, com muita luta, após os trabalhadores começarem a se organizar e a agir conjuntamente, em processo que foi muito influenciado pela vinda de imigrantes, que trouxeram para o Brasil um arcabouço ideológico e político capaz de balizar tais ações.
Nesse sentido, a Greve de 1917, considerada a primeira greve geral no Brasil, foi um divisor de águas no movimento de trabalhadores. A greve projetou os ideais anarco-sindicalistas, que fermentavam entre os trabalhadores, mobilizou a sociedade e encostou patrões e autoridades contra a parede. De todo aquele processo fica a questão: como foi possível para os trabalhadores do Cotonifício Crespi se organizarem a ponto de fazer com que trabalhadores de outras indústrias os acompanhassem, não só tecelões de São Paulo, mas também operários de outras categorias e de outros estados?
A história registra que aquele foi um trabalho de formiguinha, realizada dentro das fábricas, dos bairros e das comunidades. Dali em diante o movimento de trabalhadores cresceu e conquistou direitos. Logo ele deixaria seu viés anarquista, para adotar uma organização na qual o Partido Comunista do Brasil, criado em 1922, daria o tom. Na revolução de 30 já havia uma história substancial do ponto de vista sindical. Algo que cresceu e se consolidou até os dias atuais.
Ironicamente, hoje lidamos com elementos daquele passado de exploração patronal em vários aspectos. Um deles é a avassaladora perda de direitos consubstanciada na famigerada reforma trabalhista de 2017, que teve como objetivo principal liquidar o movimento de trabalhadores brasileiros. Outro aspecto é o advento deste novo tipo de trabalho “por aplicativo” de difícil definição e pelo qual ninguém quer se responsabilizar. Tal modalidade de trabalho apresenta-se como “moderna”, mas significa o cruel retorno àquele passado onde não havia proteção legal ao trabalhador.
Segundo os organizadores da greve dos entregadores, realizada no dia 1º de julho, as empresas responsáveis pelos aplicativos baseiam sua competitividade no mercado justamente porque se esquivam de arcar com a proteção trabalhista aos entregadores. Elas se colocam apenas como intermediárias entre o vendedor, o consumidor e o entregador, sendo o entregador, segundo a lógica cínica de tais empresas, um microempreendedor.
Desta forma ninguém se responsabiliza, ao passo que cresce a olhos vistos esse tipo de “trabalho” nos centros urbanos. Um trabalho que deveria ser um bico, um quebra galho, algo provisório ou complementar, mas que se tornou a única fonte de renda de pelo menos 4 milhões de brasileiros, segundo dados recentes do IBGE.
A negligência das empresas aliada ao expressivo desemprego, que se impõe não só a reboque da coronacrise, mas também como consequência de uma política econômica de abandono da área social, é o caldeirão onde ferve a tomada de consciência de uma categoria sobre a necessidade de união.
União que possibilitou a greve do dia 1º e que deu uma resposta às artimanhas das empresas de aplicativos, mesmo com todas as dificuldades práticas que os entregadores tem em se juntar para deflagar um movimento social. Por isso afirmo que se tratou de uma tomada de consciência de classe sim.
As condições de trabalho dos entregadores e suas reivindicações deixaram claro que o contrato individual, sem convenção coletiva, tão aclamado pelo setor patronal e por políticos de direita, destrói ainda mais direitos de proteção e garantias trabalhistas conquistados em anos e anos de lutas com união e organização sindical.
Mais do que isso, a greve demonstrou que é possível e necessário os trabalhadores se organizarem, mesmo aqueles que vivem sob essas novas regras segundo as quais as empresas usam a tecnologia para driblar e não cumprir a legislação. E a organização dos trabalhadores tem nome e uma longa história: ela se chama sindicato.
João Carlos Juruna é secretário-geral da Força Sindical e diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e Mogi das Cruzes