Artigo de J. Carlos de Assis
O capital financeiro, dos anos 80 para cá, tinha licença para matar. E quase matou o capital produtivo. A esse processo se deu o nome de globalização, embora analistas menos entusiastas o tenham chamado de “financeirização”. Não é novo. Teve uma preliminar nos anos 20, auge do liberalismo pregado nos Estados Unidos pelo presidente John Calvin Coolidge, ídolo do presidente Ronald Reagan. Como se viu, naquele caso acabou em Grande Depressão. Agora teria que acabar em algo parecido.
“Financeirização” é o modo pelo qual o capital se descola do setor produtivo, baseado este no valor trabalho. É a acumulação de valores fictícios, sem produção. Em seus momentos terminais assume a forma de uma vertigem especulativa completamente descolada de ativos reais.
É o que temos visto. No primeiro semestre deste ano, o Banco de Compensações Internacionais (BIS) estimava em US$ 600 trilhões o valor dos derivativos em circulação no mundo. Ou seja, mais de dez vezes o Produto Mundial Bruto.
A crise no mercado subprime americano é apenas a ponta do iceberg. Não estamos diante de uma “bolha” imobiliária similar à “bolha” das bolsas em 1987. Agora, o que está em jogo é “a bolha”, não “uma bolha”. Como na dança das cadeiras, o capital especulativo que gira em torno do planeta, sob diferentes formas, vai ser impelido a se sentar. E não haverá cadeira para todos.
Pode-se prever perdas gigantescas em todos os mercados, com uma rápida tentativa de migração para o único título seguro, os papéis dos Tesouros dos países centrais, ou a terra.
Por isso, o pacote de George W. Bush, mesmo melhorado pelo Congresso americano, não terá sucesso. A quantia de US$ 700 bilhões parece muito, mas é apenas aproximadamente 7% do montante das hipotecas sob suspeita, algo próximo a US$ 13 trilhões.
Os aplicadores, que podemos chamar sem qualquer escrúpulo moral de especuladores, terão perdas gigantescas. A questão, pois, não é saber o volume de perdas, mas avaliar como isso se refletirá no mercado real, onde está a renda das famílias normais e o emprego. E como o governo se comportará para evitar o caos social subseqüente.
O impacto na renda e no emprego será inevitável, pois, a despeito da função antitrabalho e anti-social dos mercados especulativos, as instituições que o constituem empregam dezenas de milhares de pessoas, a maioria delas especializada. Ficarão sem emprego num primeiro momento. Isso afetará a demanda agregada e, por esse caminho, as expectativas de investimento, gerando mais desemprego – agora, na economia real. O processo pode transformar-se numa espiral descendente, caso o governo não aja de forma sábia.
O remédio é conhecido desde o New Deal, o programa econômico de Roosevelt: ativação da demanda agregada através de déficits públicos. Até que isso seja efetivado, porém, haverá uma luta ideológica nos Estados Unidos, assim como houve antes do New Deal. Conservadores insistirão em proteger os investidores por cima, enquanto democratas, mais sensíveis a demandas sociais, procurarão dar proteção social por baixo.
É evidente que, a médio prazo, num país democrático de cidadania ampliada, os democratas acabarão vencendo.
É preciso deixar claro que a negativa de proteção a investidores/especuladores não é apenas, nem principalmente, uma questão moral. É uma questão de eficácia. Um investidor num título subprime, ou em qualquer derivativo, é alguém que estava com dinheiro sobrando e queria ganhar mais. Uma perda o atingirá no patrimônio, mas nem em todo ele ou na renda corrente. Se o governo compra seu título podre, ele vão vai gastar o valor equivalente em consumo ou investimento. Vai entesourá-lo sob alguma forma, talvez em ouro. Com isso, não dará qualquer contribuição ao aumento da produção ou da renda real da sociedade, nem estimulará o emprego.
No Brasil, já temos uma taxa de desemprego que justifica um grande programa de garantia de emprego no estilo New Deal. Num simpósio realizado em maio, no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), discutiu-se o Projeto Cidade Cidadã – um Programa de Emprego Garantido associado a um Programa de Trabalho Aplicado nas periferias metropolitanas -, que resolveria simultaneamente os problemas de desemprego e de degeneração das áreas favelizadas e ajudaria a resolver o problema da segurança, e finalmente do desemprego em geral. É hora de pensar em aplicá-lo, o que dependerá de mobilização social e decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A atual crise, que chamo de “desfinanceirização” global, demoliu um dos ícones do pensamento neoliberal, o dogma da auto-regulação dos mercados. O próximo a cair será o dogma do orçamento equilibrado (ou do superávit primário), sobretudo se o desemprego voltar a crescer.
Mesmo fazendo superávit primário, será possível financiar o projeto Cidade Cidadã, que custará, ao longo de cinco anos, cerca de R$ 40 bilhões por ano. Recorde-se que, na eleição de 1932 nos Estados Unidos, em plena Grande Depressão, ambos os candidatos falavam em equilibrar o orçamento. Só quando assumiu é que Franklin Delano Roosevelt se deu conta de que a nação estaria em crise ainda maior se insistisse nesse dogma. Seria bom que nossos líderes pensassem nisso.
J. Carlos de Assis é presidente do Instituto Desemprego Zero e concluiu o livro “O Valor Trabalho”, a ser lançado brevemente, sobre a crise, sua extensão e conseqüências, e sobre as possíveis estratégias para superá-la.