Apesar da reação da economia, a inadimplência está alta e há um grande número de empresas em recuperação judicial
Paula Pacheco
Para quem acredita que o Brasil quase não foi afetado por uma economia mundial disforme, alguns números e histórias mostram outra realidade. De setembro de 2008, quando o banco Lehman Brothers quebrou, a agosto passado, 637 empresas pediram recuperação judicial. Entre setembro de 2007 e 31 de agosto do ano passado, período pré-crise, 267 empresas recorreram à recuperação. O aumento foi de 138%. Ainda que se leve em conta que nos últimos meses os pedidos de recuperação judicial voltaram a recuar, os números mais recentes são bem mais altos do que os vistos em 2008, o que leva à conclusão que a economia brasileira ainda não voltou à normalidade.
Assessor econômico da Serasa Experian, especializada em crédito, Carlos Henrique de Almeida cita outro dado que comprova a tese de uma economia que ainda enfrenta problemas sérios. De janeiro a julho a inadimplência das empresas cresceu 29,7% em comparação a igual período de 2008. De junho a julho deste ano, a alta foi de 6,6%, ou seja, ainda está em expansão. “O principal problema está nas empresas endividadas, que tiveram uma menor oferta de crédito das instituições financeiras e dificuldades com os fornecedores que fazem o crédito mercantil”, explica.
Diante desse cenário de falta de liquidez, a solução para muitos negócios tem sido recorrer à recuperação judicial como forma de estancar o pagamento das dívidas e repactuá-las no médio prazo. Foi a saída para os sócios da rede de supermercados Passarelli, com oito lojas distribuídas pela região de Araçatuba (SP) e Três Lagoas (MS). O pedido de recuperação judicial da empresa foi deferido pela justiça na semana passada, conta Márcia Maria de Sousa, que iniciou a empresa há 23 anos com um ponto comercial de duas portinhas no bairro Passarelli, em Andradina (SP), e hoje fatura R$ 150 milhões por ano. A empresa é uma das 50 maiores do setor.
Ela explica que a crise esvaziou o consumo e aumentou a concorrência da informalidade. Segundo a empresária, até loja de R$ 1,99 passou a competir na parte de mercearia seca, vendendo artigos como arroz e feijão. A inadimplência subiu de 1,7% para 2,5%. Para piorar, o banco com o qual trabalhava negou um pedido de crédito de R$ 3 milhões. “Tivemos de sair do foco do nosso negócio, o ponto de venda, para administrar dívidas e renegociar com credores”, diz Márcia. A dívida atual é de cerca de R$ 25 milhões e 70% é com bancos.
Para fazer a correção de rota, Márcia e os sócios contrataram um escritório de advocacia especializado em recuperação judicial, buscaram um administrador no mercado e conversaram com todos os funcionários, cerca de 1 mil, sobre a nova realidade. O marido Luiz Carlos Alves, um dos sócios, ficou responsável por negociar com os cerca de 900 fornecedores. Aos poucos os grandes, como Sadia e Perdigão, estão voltando a vender para a rede Passarelli.
Márcia aprendeu uma lição. “Não sou pessimista. Mas o brasileiro não pode fugir da crise. Ele acredita que a crise não existe, continua consumindo sem se programar, acumula dívidas e não vê que isso é prejuízo para todo mundo. Ele não paga, eu não recebo e não posso gerar emprego”, analisa.
FREIO DE MÃO PUXADO
Na metalúrgica Grob, voltada à produção de máquinas para as montadoras , a crise também não se despediu. Nos últimos 12 meses a empresa acumula apenas quatro contratos de venda. Como seus produtos são sob encomenda e levam até 12 meses para ficarem prontos, o que está em produção é suficiente para manter os funcionários ocupados apenas até março.
O primeiro departamento a sentir a falta de pedidos foi o de engenharia, responsável por projetar as máquinas, afirma Michael Bauer, presidente da Grob do Brasil, de origem alemã. Metade da receita vinha de exportação e foi onde a indústria sentiu a maior queda. Para assegurar parte da receita, o executivo reforçou o departamento de assistência técnica.
Recentemente Bauer sentiu mais um golpe da economia conturbada. Um cliente chinês cancelou uma encomenda de 3 milhões. Agora ele se prepara para fazer mais ajustes na companhia por conta da falta de pedidos. No início da crise ele contava com 740 funcionários. Já reduziu para 660 e nas próximas semanas, além de dar férias coletivas, terá de manter no quadro apenas 500 trabalhadores. Com 20 anos de empresa, ele não tem dúvida: “Vi outras crises, mas elas não levaram a uma desaceleração tão rápida quanto esta. A crise acabou para quem? Para o consumo direto, que teve incentivo fiscal e redução de juros. Nós dependemos do planejamento de investimento das empresas”.
Metalúrgico diz que pensou até em roubar
´Não farei isso, mas senti humilhação quando acampei na casa da sogra´
Paula Pacheco
O Brasil tem sido apontado como um dos mais bravos sobreviventes da crise global. A crise pode ter se dissipado para alguns analistas financeiros e organismos multilaterais, mas ainda atormenta a vida de empresários e trabalhadores, para quem a debilidade econômica bate à porta todos os dias em forma de contas vencidas, telefonemas do gerente do banco, corte do fornecimento de luz e desentendimentos familiares.
Metalúrgico há 35 anos, Davi Dalécio, 48 anos, funileiro industrial, conta, constrangido e emocionado: “Já pensei até em roubar, mas não vou fazer isso. Quando cortaram a luz da minha casa por causa de uma conta de R$ 80 tive de acampar com minha mulher e meus dois filhos na casa da minha sogra. Eu me sinto envergonhado, humilhado. A crise fez um estrago que ainda não passou.”
Dalécio é funcionário da Lawes, metalúrgica de São Bernardo do Campo (na Grande São Paulo) especializada na produção de máquinas para a indústria farmacêutica. A crise fez com que os clientes da fábrica cancelassem ou adiassem os pedidos para novos equipamentos. E o problema de caixa que vinha se acumulando nos últimos anos se agravou. A empresa, que nos bons tempos chegou a ter 150 empregados, hoje tem 26 “heróis”. Heróis? Isto mesmo. Os trabalhadores que ainda dão expediente na metalúrgica estão com cinco salários atrasados.
Walter Ishizuka, gestor da companhia, tem administrado os negócios ao lado de uma comissão de funcionários e com o apoio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Ele precisa encontrar uma forma de tirar a empresa do buraco. A empresa toda está penhorada e o passivo, numa conta conservadora, é de R$ 30 milhões.
O metalúrgico e os colegas têm contado com doações de outros metalúrgicos do ABC. Já receberam cesta básica e com o dinheiro arrecadado a empresa pode comprar material para o dia a dia, como tinta para manutenção e copos de plástico para o cafezinho.