Home Notícias Aposentados Previdência Social POR QUE TRABALHAREMOS ATÉ MORRER?
09 maio 2017
Aposentados
Devido às características do mercado de trabalho brasileiro, a capacidade de contribuição dos trabalhadores é bastante limitada. Consideremos apenas o alto nível de informalidade, a rotatividade elevada e a baixa remuneração. Isso implica que, ao chegar aos 65 anos, parte das pessoas não terá atingido os 25 anos de contribuição exigidos e não poderá se aposentar
por: Lucas Salvador Andrietta
8 de maio de 2017
Fica cada vez mais claro para todos que as reformas trabalhista e previdenciária propostas pelo governo Temer se apoiam em justificativas rasas, numa estratégia midiática agressiva e numa violência policial desmedida e antidemocrática.
A postura do governo é consequência de um fato evidente: não há nenhum apoio social às reformas. Nem ao governo. Num país que tenta entender e lidar com a recente polarização na superfície da esfera político-partidária, pesquisas de diversos vieses mostram importantes pontos de convergência.
Coxinhas, mortadelas e outros quitutes do nosso variado espectro político-gastronômico ampliam cada dia mais a rejeição a Temer. As pesquisas indicam ainda que o tema da Previdência, juntamente com a corrupção, tem sido determinante no aumento da rejeição ao governo.
É nítido, também, que o governo intensifica a sua estratégia midiática para propagar o slogan falso e ameaçador de que é preciso reformar a Previdência hoje para que ela não acabe no futuro. E faz isso abandonando abertamente qualquer tipo de pudor e recheando o noticiário de absurdos éticos, como encontros casuais no cabeleireiro com empresários da comunicação, intermediação de amigos comuns para decidir sobre questões de interesse público, jantares opulentos para conquistar apoio e outros expedientes.
Lembremos ainda da crescente verba pública destinada à publicidade, as amigáveis entrevistas dadas por ministros em programas de TV e a cobertura pasteurizada e parcial das notícias relativas à reforma.
É claro, também, como toda e qualquer forma de resistência vem sendo sistematicamente repreendida pelas forças policiais de todo o país. Os episódios ocorridos durante a greve geral do dia 28 de abril são apenas amostras do papel que a polícia tem desempenhado – desde muito antes do golpeachment, é sempre necessário lembrar – na contenção da resistência às reformas impopulares.
No Rio de Janeiro, por exemplo, a polícia iniciou a agressão aos manifestantes antes mesmo que o ato tivesse início. Em Goiânia, um policial quebrou um cassetete no rosto de um cidadão durante a manifestação. Dias antes, Rafael Braga foi condenado a onze anos de prisão por uma acusação forjada.
Esses episódios são lembretes pontuais de que a violência e o racismo da polícia e do judiciário não são casos isolados que podem ser resolvidos apenas administrativamente, pelo “afastamento dos envolvidos”, pela “abertura de inquérito”, pela “apuração dos fatos” ou por outras declarações de boa intenção por parte dessas instituições.
Enquanto isso, um economista influente reduz a complexa reforma trabalhista a uma trivialidade qualquer, desdenha do “esperneio” da maioria da população, ao mesmo tempo que elogia a restrição do debate público ao uso de gás lacrimogêneo.
A postura do governo demonstra que não há espaço aberto para debater questões relativas aos direitos sociais que estão sendo retirados da população. Apesar das justificativas rasas apresentadas na propaganda, a reforma se apoia em argumentos meramente orçamentários.
A questão parece reduzir-se à ideia de que a Previdência é um luxo que o Brasil não pode mais pagar. Isso se soma à ideia de que os cortes de gastos sociais serão suficientes para reverter a crise que o Brasil enfrenta.
O debate dentro da ordem
Independentemente das sofisticadas teorias econômicas que elaboram e divergem sobre a política econômica, o gasto público e o ciclo atual vivido pelo país, chama a atenção a má qualidade do material apresentado pelo governo para defender a reforma previdenciária. Veja-se, por exemplo, as projeções grosseiras feitas pelo governo para 2060, que foi analisada e contraposta por um estudo recente.
Os propositores da reforma apoiam-se no senso comum a respeito do tema. Na percepção geral e entre quem estuda o tema, há grande consenso de que a Previdência precisa ser reformada. As políticas públicas são formuladas em contextos históricos específicos e podem deixar de responder às transformações sociais posteriores.
Por essa razão, muitos países do mundo estão rediscutindo seus regimes previdenciários para dar respostas a questões como a desigualdade entre beneficiários, o envelhecimento populacional, o aumento da expectativa de vida e as mudanças no mercado de trabalho.
Mas reformar a Previdência não implica necessariamente reduzir direitos. Se houver o interesse em mantê-los, é preciso pensar em como garanti-los na prática: não apenas definindo suas regras de acesso, mas também sua estrutura de financiamento. A sociedade deve decidir quem é que paga a conta.
Mais do que isso, para nós, coloca-se o desafio de pensar num sistema adequado à realidade brasileira. Não apenas copiando parâmetros e tendências de outros países, mas considerando nossas desigualdades sociais e regionais, a realidade do nosso mercado de trabalho, nossa estrutura tributária, entre outros elementos. No contexto atual, isso passa por contrapor os argumentos do governo sobre esses temas, como tem sido o esforço de muitos especialistas.
O governo, ainda que ilegítimo, optou por cumprir os ritos formais da nossa democracia representativa no encaminhamento da reforma. Note-se, por exemplo, a realização de audiências públicas sobre o tema, em que importantes contrapontos e denúncias foram apresentados. Como era previsível, esta fase encerrou-se com alguns recuos do governo em pontos marginais da proposta, sem que o essencial fosse revertido.
Assim conclui-se formalmente a participação direta da sociedade nas mudanças, deixando claros os limites da ordem estabelecida. A partir de agora, o destino da reforma depende da articulação parlamentar – amplamente favorável ao governo – e da capacidade de enfrentamento e resistência nas ruas.
A velhice que nos espera
Entre as lacunas deixadas pelo material que o governo apresenta, a que mais chama a atenção é a ausência completa de alternativas aos direitos sociais que serão retirados. O texto demonstra a falta de preocupação com as consequências esperadas da reforma e uma profunda insensibilidade com a situação que grande parte da população deve enfrentar quando envelhecer.
As mudanças propostas dificultam o acesso à aposentadoria. Consideremos apenas as quatro principais: 1) a imposição da idade mínima de 65 anos; 2) o aumento da carência mínima de 15 para 25 anos; 3) as mudanças na aposentadoria rural; e 4) as mudanças no BPC.
A imposição da idade mínima de 65 anos para homens e 62 anos para mulheres extingue a Aposentadoria por Tempo de Contribuição. Hoje, essa modalidade abrange um terço dos 30 milhões de aposentados brasileiros. Ela afeta principalmente aquelas pessoas que conseguem, ao longo da vida de trabalho, contribuir por 35 ou 30 anos e que hoje conseguem se aposentar em torno dos 55 anos. Além disso, as mudanças na regra de cálculo dos benefícios impõem um fator previdenciário que deve reduzir ainda mais o valor dos benefícios.
Atualmente, quase 70% dos beneficiários do INSS recebe apenas um salário mínimo. Para o governo, esses são os “privilegiados” do mercado de trabalho brasileiro e a reforma teria o grande mérito de promover a igualdade entre os trabalhadores, já que todos se aposentarão com a mesma idade mínima. Num país onde as pessoas entram no mercado de trabalho, em média, antes dos 17 anos, isso significa prolongar a vida de trabalho de todos. Em vez de melhorar as condições dos mais prejudicados pelo sistema, fazemos a opção de nivelar os direitos por baixo. Mas essa não é a mudança que terá o maior impacto sobre a população idosa.
O aumento da carência mínima afeta a maior parte dos trabalhadores brasileiros, que se enquadram na modalidade de Aposentadoria por Idade, cerca de dois terços dos aposentados hoje. Com as regras atuais, os trabalhadores que chegarem aos 65 anos podem solicitar a aposentadoria, desde que tenham contribuído com 180 mensalidades (15 anos) ao longo de toda a sua vida de trabalho. O governo propõe aumentar essa exigência para 300 mensalidades (25 anos).
Na prática, essa mudança deve impedir que um grande contingente de pessoas se aposente. Devido às características do mercado de trabalho brasileiro, a capacidade de contribuição dos trabalhadores é bastante limitada. Consideremos apenas o alto nível de informalidade, a rotatividade elevada e a baixa remuneração. Isso implica que, ao chegar aos 65 anos, parte das pessoas não terá atingido os 25 anos de contribuição exigidos e não poderá se aposentar.
As desigualdades, portanto, podem se manter ou se acentuar, pois aqueles que têm uma inserção mais precária no mercado de trabalho tenderão a prolongar sua vida de trabalho ou, eventualmente, não conseguirão se aposentar de forma alguma. Isso significa, na prática, dificultar o acesso ao direito de aposentar-se para uma população que começa a trabalhar muito cedo, trabalha por muito tempo, com muita intensidade e chegará à velhice totalmente desamparada. Se somarmos a isso os efeitos da reforma trabalhista, as condições de acesso à aposentadoria deverão ser ainda mais prejudicadas.
O desprezo pelos direitos sociais fica mais explícito quando se trata das mudanças propostas para a Aposentadoria Rural. Esse direito foi inicialmente pensado para atender a um grupo grande de trabalhadores, que executa um trabalho socialmente necessário e árduo e que, por não ter um rendimento constante na sua atividade, tinha baixa capacidade de contribuir nos moldes dos trabalhadores urbanos assalariados.
Por isso, sua contribuição é feita no momento da venda de sua produção e, ao atingir a velhice, aqueles trabalhadores que comprovarem ter trabalhado por quinze anos em atividade rural têm o direito de solicitar uma aposentadoria no valor de um salário mínimo. A proposta do Governo para essa modalidade é igualar as regras de acesso ao do trabalhador urbano, exigindo contribuições mensais por longos períodos de tempo, sem considerar a irregularidade da renda das famílias atingidas pela mudança. Na prática, a mudança inviabiliza a aposentadoria de um grande contingente de pessoas que atualmente trabalham nessas condições.
Por fim, aqueles que, hoje, não conseguem se aposentar, podem solicitar o Benefício de Prestação Continuada (BPC), popularmente conhecido como LOAS, que oferece um salário mínimo para maiores de 65 anos ou deficientes físicos cuja renda domiciliar per capita não ultrapassa um quarto do salário mínimo. O governo propôs – e recuou levemente – que a idade para acessar o BPC subisse para 70 anos e, além disso, que o valor dos benefícios deixasse de acompanhar a valorização do salário mínimo.
A seletividade e o “déficit”
O aspecto mais perverso das reformas previdenciárias talvez seja o fato de que, nos termos em que se coloca a questão, elas nunca resolverão os problemas para os quais supostamente são realizadas. Isso fica explícito no debate sobre o déficit da Previdência.
Desde que respeitemos a Constituição Federal, é evidente que as contribuições e tributos que arrecadamos para financiar a seguridade são mais do que suficientes para pagar os benefícios. Na prática, é o INSS quem transfere recursos para que o governo gaste com outras finalidades.
Mesmo considerando os gastos previdenciários totais, que incluem servidores públicos, fica claro que os maiores responsáveis pelo tal “rombo” na Previdência são precisamente as categorias que não serão afetadas por essas reformas. É preciso parar de referir-se aos aposentados do setor público como uma grande massa homogênea de privilegiados, uma vez que a maior parte deles é composta por pessoas com remunerações baixas e médias: professores, enfermeiros, assistentes sociais, policiais, escriturários em geral e outras ocupações. Esses serão afetados pelas reformas.
Por outro lado, um grupo pequeno de funcionários de alto escalão, do Poder Judiciário, das Forças Armadas, recebe benefícios suficientes para pagar dezenas de salários mínimos. Além disso, conseguirão provavelmente aposentar-se mais cedo que a maioria.
Vida que segue?
Portanto, não é possível aceitar os argumentos apresentados pelo governo sem nenhum questionamento sobre a seletividade das reformas, à falsa ideia de que não há alternativas de financiamento – por exemplo, o imposto sobre grandes fortunas –, e de que o Brasil deve acompanhar os “parâmetros internacionais”, desconsiderando a sua realidade.
Não faltam propostas e discussões sobre como a Previdência Social – e cada um dos direitos sociais por ela garantidos – poderia ou deveria ser. Poderíamos ainda pensar, de forma radical, em como explorar as muitas possibilidades de combinação entre o trabalho e o tempo livre, considerando os avanços que nos permitem produzir cada vez mais riqueza e viver vidas cada vez mais longas.
Porém, o que está colocado nesse momento é a retração dessas possibilidades, como se não houvesse alternativas a seguir. Como se a única alternativa para o nosso envelhecimento fosse trabalhar mais. Como se o prolongamento das nossas vidas não fosse algo a se comemorar, mas um fardo insustentável que temos que pagar. Que pelo menos possamos envelhecer resistindo de todas as formas possíveis.
*Lucas Salvador Andrietta é economista, mestre em Economia Social e de Trabalho pela Unicamp e doutorando pela mesma instituição.
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