Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos

1917-2017

A histórica greve de 1917 e os seus reflexos no sindicalismo brasileiro

Augusto Cesar Buonicore*

Em forma de crônica, o autor relata os momentos principais da memorável greve de julho de 1917 – numa homenagem aos 75 anos deste episódio que teve profundo impacto no movimento operário do país. A paralisação, que durou mais de 50 dias e adquiriu características insurreicionais, mostrou a força, mas também as limitações do anarquismo. Como consequência, pouco tempo depois os comunistas conquistariam a hegemonia do sindicalismo brasileiro.


HISTÓRIA


“Em São Paulo só não ganha dinheiro quem não trabalha, só é pobre quem é vadio.” Correio Paulistano —Junho/1917


A situação era tensa. Um grupo de operários chega à porta do Cotonifício Crespi e conclamando os operários a aderirem ao movimento grevista, que havia se iniciado há dias. A pollcia, decidida a não permitir piquetes, intervém violentamente, abrindo fogo contra os grevistas.

O saldo: um morto, Jose Martinez, 21 anos, operário-sapateiro. Depois deste dia São Paulo não será mais a mesma.

Numa fria manhã de Julho, dia 11, uma multidão de cerca de 10 mil pessoas caminha lenta pelas ruas da cidade. São Paulo está parada em uma última homenagem ao operário morto. As bandeiras vermelhas e negras tremulavam entre choros e o sentimento de vingança. A São Paulo proletária estava nas ruas, nunca se vira aquilo antes.

O cortejo fúnebre segue lento pelo aterro do Carmo, hoje continuação da avenida Rangel Pestana, tentando se dirigir ao palácio do Governo, mas é impedido pela polícia, que acompanha tudo de perto. Segue então pela rua Floriano Peixoto até a Praça XV de Novembro.

De repente a multidão para e só se houve um grito:

— Libertem Nalepirisk! Libertem Nalepinsk!

Nalepinsk, outro sapateiro, preso por ter denunciado o assassinato de Martinez. Uma comissão se desloca até a Secretaria da Justiça para exigir a sua libertação. O delegado geral, acuado, promete soltá-lo após o cortejo. Uma vitória, a primeira. A multidão avança, chega a Praça da Sé. Agora é a vez dos discursos. O cortejo segue então ate o Cemitério do Araça, sua última parada.

No cemitério, diante do túmulo de Martinez, os oradores se revezam, são homens e mulheres.

Na voz dos operários a indignação e a revolta.

“Soldados, Não deveis perseguir os vossos irmãos de miséria… A fome reina em nossos lares, e os nossos filhos nos pedem pão.

Os perniciosos patrões contam, para sufocar as nossas reclamações, com as armas de que vos armaram… Soldados! Recusai-vos ao papel de carrascos.”

A multidão chora, nem mesmo os soldados escalados para vigiar o movimento se contém e enxugam os olhos com as mangas das fardas.

Um operário morreu, e agora?


Ser operário naqueles dias não era nada fácil, nunca foi. Trabalhava-se em media 14 horas diárias, sem férias, sem descanso semanal remunerado, sem nenhum tipo de assistência.

Para eles apenas o trabalho. “Produzir, produzir, deve ser o lema dos paulistas.” Mas produzir para quem? perguntam os operários.

Por todo este trabalho, recebiam apenas um parco salário que não era suficiente nem para o sustento de sua família, o que levava as suas mulheres e filhos a também se empregarem nas fábricas, submetendo-se às mesmas condições de trabalho e recebendo, é claro, menores salários.

Os serviços eram insalubres, as jornadas de trabalho eram longas, inclusive noturnas, sem horário para as refeições, que eram feitas ali mesmo do lado das máquinas. Afinal! São Paulo não pode parar. Oh! Pobre dos Proletários!

Em 1912, 67% dos trabalhadores têxteis eram mulheres. Em 1918, mais de 50% do operariado fabril era constituído de menores, inclusive de 12 anos, como podemos notar neste trecho de artigo de um jornal da época:

“Assistimos a entrada de cerca de 60 menores, às 7h da noite… Essas crianças saem às 6h da manhã. Trabalham, pois, 11 horas a fio em serviço noturno, apenas com um descanso de 20 minutos… O pior é que elas se queixam de serem espancadas pelo mestre de fiação… Alguns apresentam mesmo ferimentos produzidos por uma manivela. Trata-se de crianças de 12, 13 e 14 anos.”

O custo de vida aumentava dia-a-dia. Em 1916, os gêneros alimentícios subiram mais de 60% sem que houvesse qualquer reajuste salarial.

Começava a faltar alimentos e toda a nossa produção era vendida para a Europa, que estava em guerra. A fome batia as portas. E neste contexto que tem início a onda de greves que abalará o país. Em Julho, o que parecia mais uma simples greve, como outras tantas que já haviam ocorrido desde o começo do século, acabaria por desembocar no maior movimento de contextação operária já vista na história do Brasil e da América Latina até então.

 

 

Uma comissão de operários do Cotonifício Crespi se dirige à direção da empresa exigindo um aumento salarial de 20%, alegando aumento do custo de vida. Crespi não aceita o pedido.

Os operários ameaçam com uma greve. A resposta do patrão é fechar a fábrica. A greve então se amplia estendendo-se a outras categorias.

No dia 8 de Julho, o primeiro incidente na porta da fábrica do Crespi. Um choque entre operários e policiais deixa inúmeros feridos; os ânimos se acirram. Na manhã do dia seguinte, novo incidente na porta da Cia Antártica. Trabalhadores enfurecidos tomam um caminhão da companhia e destróem as garrafas por ele transportadas. Seguem em passeta pelo Brás até a Fábrica Mariângela. Novo confronto, cai baleado Martinez. Um operário morreu e agora?

Saindo do enterro, a multidão dirige-se à Praça da Sé para um grande comício de protesto, no qual exige a reabertura das ligas operárias, proibidas de funcionar no dia anterior, e a libertação dos presos e a punição dos assassinos.

O Comitê de Defesa Proletária, também formado no dia anterior, composto basicamente por anarquistas, assume a direção do movimento e apresenta a sua pauta de reivindicações: aumento de 35% dos salários, proibição do trabalho de menores de 14 anos, abolição do trabalho noturno para menores e mulheres, jornada de trabalho de 8 horas, respeito ao direito de associação, congelamento de preços dos alimentos e redução dos aluguéis.

Nos bairros operários cresce o descontentamento.

Milhares de grevistas saqueiam lojas e armazéns. O número de grevistas cresce dia-adia.

De 10 mil, o número de grevistas sobe para 20 mil (mais de quarenta mil trabalhadores entraram em greve durante o movimento). Eram sapateiros, eletricitários, trabalhadores das companhias de gás, mecânicos e quase a totalidade dos trabalhadores das pequenas oficinas, que compunham o grosso da classe operária do período.

Aumenta a greve, aumenta a repressão e a resposta dos operários é imediata: erguem-se barricadas. Os grevistas tomam os bondes da cidade. Alguns são destruídos pela fúria popular.

“… Uma multidão de garotos” — afirma o jornal Estado de S.Paulo — “se entregou a todos os excessos, escolhendo para alvo de suas loucuras os carros elétricos… E o que é mais deplorável, é que um bando de mocinhas, infelizes operárias de fábricas, imitou os gestos da garotada, tomando conta de três elétricos no Largo da Sé.” Os grevistas tentam ocupar a 5a delegacia do Brás e não conseguem. O posto policial passa a ser defendido pelas tropas de infantaria e pela cavalaria.

No Largo da Estação Norte, os policiais tentam invadir o Café Raga, onde se reuniam alguns líderes grevistas, anarquistas, mas são recebidos a bala e no tiroteio vários caem feridos.

Novamente formam-se barricadas com sacos de mantimentos, caixões, veículos. As ruas do Bras e da Mooca transformaram-se, instantanemanete, num labirinto de barricadas, que ninguém ousava percorrer. No dia 13 de Julho os jornais publicam nota da Degelacia Geral:

“pedimos ao povo pacífico que se recolha às suas casas para não ser colhido no meio dos desordeiros.., pois a polícia… vai manter a ordem,para isso empregando os meios mais enérgicos.”

Frente aos constantes casos de insubordinacão da Força Pública e da guarda cívica, que se recusavam a reprimir os grevistas são solicitadas tropas do interior. Navios de guerra aportam em Santos. Marinheiros são destacados para reprimir populares que saqueavam os armazéns do porto. “A polícia não permitirá reuniões nas praças e ruas públicas, dissolverá pela força os que pretendeam ir contra a esta resolução” — afirma um novo comunicado.

Tropas de Infantaria e a Cavalaria percorrem as ruas dispersando aglomerações.

Sexta-feira, falta pão, gás, transporte; um grupo de operários tenta parar um dos poucos bondes que ainda teimam em circular, escoltado por policiais fortemente armados. Novo tiroteio, outra vítima, uma menina de 12 anos.

Os tiroteios se sucedem. Outro morto, o pedreiro Nicola Salermo.

 

 

Diante do impasse nas negociações entre operários e patrões, uma comissão de jornalistas de diversas publicações da capital é formada para mediar o conflito. O resultado dessas negociações foi uma proposta patronal de aumento geral de salários de 20%, respeito ao direito de associação, não dispensa de grevistas.

O governo se comprometia a libertar os presos e a reconhecer o direito de reunião. E uma promessa de que “o poder público intercederá…para que sejam estudadas e votadas medidas que defendam os trabalhadores menores de 18 anos e as mulheres no trabalho noturno”. Propostas estas aceitas pelo Comitê de Defesa Proletária.

O comitê decide, então, comunicar a proposta em três grandes comícios no Largo da Concórdia, na Lapa e no Ipiranga. Neles é aceita a proposta patronal e decidido a volta ao trabalho, mas sob a condição de se voltar à greve caso os patrões descumprissem o acordo. “Com a volta de alguns milhares de operários para o trabalho, a cidade retomou ontem o aspecto que tinha antes de se iniciar o movimento grevista” — afirma aliviado o jornal o Estado de São Paulo. Mas a calma era apenas aparente. Depois destes dias, São Paulo não seria mais a mesma. A paisagem urbana havia mudado com a entrada em cena de um novo personagem — o proletariado.

Embora os acontecimentos de Julho de 1917 tenham representado uma das mais belas páginas da luta do proletariado brasileiro, apresentou também as suas limitações. Pouco a pouco todas as conquistas da greve foram sendo retiradas.

As perseguições e prisões dos principais líderes grevistas não só continuaram como aumentaram.

As promessas da burguesia pouco a pouco transformaram-se em pó. Mas por quê isto ocorria?

Primeiro porque, apesar de combativos, os operários constituíam-se em minoria da população e se encontravam dispersos em pequenas oficinas, existindo assim, uma fragilidade nas organizações dos trabalhadores. Em segundo lugar, esta fragilidade dava lugar a proliferação das idéias anarquistas, típica dos pequenos artesãos.

Os anarquistas passam a hegemonizar a direção do movimento. Eles recusam-se a organizar os operários de maneira mais centralizada, negavam a necessidade do proletariado se organizar enquanto partido, único instrumento capaz de travar a luta política contra a burguesia e o seu Estado.

A miopia política os prendia apenas nos marcos da luta estritamente econômica. Questões chaves, como liberdades democráticas (eleições livres, voto secreto, direito de voto aos estrangeiros residentes no país), reforma agrária ou a luta anti-imperialista, passavam ao largo das reivindicações anarquistas. Num país dependente, composto por uma população de maioria camponesa, dirigido por uma oligarquia, que excluía grande parte da população de participação política, estas seriam questões que poderiam trazer aliados aos operários.

Se por um lado a greve de 1917 representou o ápice da influência anarquista no movimento operário brasileiro, por outro lado, mostrou todas as suas limitações, que em pouco tempo acabariam por eliminar sua influência no movimento.

A Revolução Russa de Outubro de 1917 mostraria um outro caminho: o da organização do proletariado enquanto partido e enquanto classe no poder. Mostraria a necessidade da revolução e da construção de um Estado Proletário, algo incompreensível para os anarquistas.

A conseqüência necessária dos embates de 1917 foi, sem dúvida, a fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922 — o marco da crise geral do anarquismo no país.

Augusto Cesar Buonicore*
Dirigente do Sindicato dos Servidores Municipais de Campinas (SP)
texto publicado em 1992